A música clássica sempre foi vista como uma arte elitizada, acessível apenas a uma minoria privilegiada. No entanto, iniciativas voltadas para a inclusão social estão gradativamente mudando essa realidade, permitindo que grupos historicamente excluídos encontrem na música clássica uma nova forma de expressão e participação. Através de projetos de acessibilidade, a arte erudita está sendo democratizada, tanto na formação de artistas quanto na ampliação do público.
A reinterpretação de Carmen: o Coletivo Ubuntu e a inclusão social no palco
Um exemplo recente dessa transformação é o projeto do Coletivo Ubuntu Brasileiro, fundado em 2020 com o objetivo de criar espaços inclusivos no canto lírico. Uma das principais produções do grupo é uma releitura da ópera “Carmen”, de Georges Bizet, protagonizada exclusivamente por artistas negros. A trama, ambientada originalmente na Espanha do século XIX, ganha novos contornos ao ser transposta para a periferia brasileira, trazendo consigo questões contemporâneas de gênero e raça.
A adaptação realizada pelo Coletivo Ubuntu não apenas expande a visibilidade de artistas negros na música clássica, mas também conecta essa arte ao cotidiano de populações historicamente marginalizadas. Essa releitura também busca aproximar o público de uma arte muitas vezes considerada inacessível, vestindo os personagens com roupas do dia a dia e ambientando a história em cenários familiares às periferias urbanas do Brasil.
A desigualdade nas orquestras brasileiras
Embora milhares de crianças e jovens, especialmente de baixa renda, participem de programas de formação musical, a realidade nas principais orquestras brasileiras permanece desigual. Estudos apontam que a presença de artistas negros em orquestras profissionais ainda é mínima, e a maioria dos músicos que integram esses corpos artísticos são brancos e de classe média.
Alessandra Costa, diretora-executiva da organização Sustenidos, destaca que essa disparidade reflete não apenas o elitismo, mas também as barreiras socioeconômicas enfrentadas por jovens talentos negros. Mesmo em processos seletivos “às cegas” – onde os avaliadores não veem os candidatos – a desigualdade persiste, pois muitos músicos não conseguem acesso a uma formação continuada devido às dificuldades financeiras, como adquirir instrumentos ou pagar por cursos de aperfeiçoamento.
Ações afirmativas e iniciativas de inclusão
A fim de combater essa desigualdade, surgem ações afirmativas no âmbito da música clássica. O prêmio Joaquina Lapinha, por exemplo, é uma iniciativa que busca fomentar o canto lírico entre minorias, garantindo a inclusão de pretos, pardos, indígenas e LGBTQIAP+ em grandes orquestras como a do Theatro Municipal de São Paulo.
Além disso, o projeto Guri, com mais de 100 mil alunos, é uma das maiores iniciativas de inclusão social pela música no Brasil. Desde sua criação, em 1995, o projeto já impactou mais de um milhão de crianças e adolescentes, oferecendo uma base sólida para jovens músicos de todo o país. No entanto, a participação feminina e de pessoas negras ainda diminui drasticamente nas etapas finais de profissionalização, mostrando que há muito a ser feito.
O papel das orquestras comunitárias
Outra iniciativa que tem contribuído para a inclusão social na música clássica é o trabalho de orquestras comunitárias, como a Orquestra Maré do Amanhã, no Complexo da Maré, Rio de Janeiro. Fundada em 2010, a orquestra oferece formação musical a mais de 4 mil crianças e jovens, em uma das maiores favelas do país. Para Carlos Eduardo Prazeres, fundador da orquestra, a música não é apenas uma ferramenta de educação, mas também de transformação social, capacitando os jovens a romper com a violência e a marginalização.
Desafios e perspectivas futuras
Apesar dos avanços, o caminho para uma música clássica verdadeiramente inclusiva ainda enfrenta obstáculos. A maioria das iniciativas depende de financiamento via leis de incentivo, e os desafios socioeconômicos enfrentados por jovens músicos – desde a aquisição de instrumentos caros até a falta de tempo para se dedicar aos estudos musicais – continuam a limitar o acesso de grupos minoritários.
Ainda assim, o impacto dessas iniciativas já é perceptível. A inclusão de artistas negros e periféricos no cenário da música clássica não apenas diversifica os elencos, mas também enriquece a interpretação de obras, especialmente de compositores brasileiros como Villa-Lobos e Camargo Guarnieri. A longo prazo, espera-se que esses projetos formem uma nova geração de músicos mais diversa e representativa da sociedade brasileira.